Rosto imortalizado
em busto do século 19
foi parar em
treinamentos de primeiros socorros
|
“Milhões de pessoas em todo o mundo
aprenderam a fazer ressuscitação cardiopulmonar (RCP) em um manequim conhecido
como Resusci Anne. A história por trás da modelo do século 19 - ou, pelo menos,
uma versão dela - vai ser contada em um simpósio em Londres para marcar o European Restart a Heart Day. Mas será
que alguém realmente sabe alguma coisa sobre ela?
Jeremy Grange, BBC Brasil
A oficina Lorenzi é um pequeno paraíso de
antiguidades em Arcueil, um movimentado subúrbio de Paris. E é o último de sua
categoria. No andar de baixo os mouleurs,
aqueles que fazem os moldes, criam estatuetas, bustos e estátuas, despejando
gesso em moldes da mesma maneira que eles têm feito desde que o negócio da
família começou, na década de 1870.
Mas se você quer ficar cara a cara com a
história, suba as escadas de madeira empoeiradas para o sótão da oficina. É uma
experiência perturbadora. Há máscaras de poetas e artistas, políticos e
revolucionários penduradas por todos os lados: Napoleão , Robespierre,
Verlaine, Victor Hugo, a face robusta e impaciente de Beethoven quando era vivo
e a feição pálida do compositor em sua máscara feita após a morte.
No entanto, surpreendentemente, de todos os
rostos em exibição no Lorenzi, o mais vendido é a máscara de uma jovem mulher. Ela
tem um rosto atraente, agradável, com um breve sorriso em seus lábios. Seus
olhos estão fechados, mas dão a sensação de que podem abrir a qualquer momento.
Esta é a única máscara que não tem nome. Ela é conhecida simplesmente como L'Inconnue
de la Seine, a
mulher desconhecida do rio Sena.
A
mulher desconhecida
Como era costume naquele tempo, seu corpo foi colocado em exposição no necrotério de Paris, na esperança de que alguém iria reconhecê-la e identificá-la. O patologista de plantão ficou tão encantado com a expressão da menina e seu enigmático meio-sorriso que ele pediu a um moldador que fizesse um molde de gesso de seu rosto.
Em pouco tempo, a máscara começou a ser vendida fora das oficinas dos mouleurs na margem esquerda do rio, e logo a jovem se tornou uma musa para artistas, escritores e poetas, todos ansiosos para criar identidades e histórias imaginárias sobre a mulher misteriosa, a Mona Lisa afogada.
Ao longo dos anos, nomes como os poetas Rainer Maria Rilke e Louis Aragon, o fotógrafo e pintor Man Ray e o escritor Vladimir Nabokov foram enfeitiçados pela Inconnue, e houve um tempo em que nenhuma sala moderna na Europa estava completo sem uma máscara dela na parede.
Uma das primeiras histórias criadas com a personagem foi a novela de 1899 The Worshipper Of The Image (O Adorador de Imagem, em tradução livre) de Richard le Gallienne, que retrata a máscara como uma força malévola que enfeitiça e acaba por destruir um jovem poeta.
Outros autores foram mais gentis. Muitos deles contaram a história de uma jovem inocente do interior, que chega a Paris, é seduzida por um amante rico e abandonada quando engravida. Sem ninguém a quem recorrer, ela se afoga nas águas do Sena. No necrotério, seu belo rosto, pacífico após a morte, é preservado para sempre com um molde de gesso.
Versão mais famosa diz que busto seria de mulher afogada encontrada no rio Sena |
Resusci
Anne
Foi
outro afogamento - ou quase afogamento - que garantiu à Inconnue um lugar na história da
medicina. Em 1955, Asmund Laerdal salvou a vida de seu filho, Tore, agarrando o corpo sem vida do menino de dentro d'água a tempo de limpar suas vias
respiratórias. Na época, Laerdal era um bem sucedido fabricante norueguês de brinquedos, especializado na fabricação de bonecas e carros que faziam parte da nova geração de brinquedos plásticos moles.
Quando foi abordado para fazer um boneco para ajudar na formação técnica da recém inventada técnica de RCP – que combina compressões torácicas à respiração boca-a-boca e pode salvar a vida de um paciente cujo coração parou – a experiência de quase morte de seu filho alguns anos antes fez com que ele se interessasse pela ideia.
Asmund criou um manequim que simula um paciente inconsciente que precisa de RCP, mas queria que o boneco tivesse uma aparência natural. Ele também achou que um manequim do sexo feminino pareceria menos "ameaçador" para os aprendizes.
Ao lembrar-se de uma máscara pendurada na parede da casa de seus avós, muitos anos antes, ele decidiu que a Inconnue de la Seine seria o rosto da manequim Resusci Anne. Então, se você for uma das 300 milhões de pessoas que foram treinadas em RCP, você quase certamente "beijou" a desconhecida francesa.
Através da Resusci Anne, estudantes de primeiros socorros têm, por mais de 50 anos, tentado trazer de volta à vida a jovem do Sena. Mas será que a Inconnue é realmente o rosto de uma mulher morta? Ou será que foi tirada a partir de um modelo vivo?
Morta
ou viva?
Sentado na sala de comando de um dos barcos policiais, ancorado em sua sede perto da Pont d' Austerlitz, o chefe da brigada Pascal Jacquin não estava convencido de que a menina estava morta quando a máscara foi feita.
"É surpreendente ver um rosto tão pacífico", disse ele. "Todos que encontramos na água, os afogados e os que cometeram suicídio, nunca parecem em paz. Eles estão inchados, não têm uma boa aparência."
Ao longo dos séculos, os artistas e escritores podem ter usado as histórias de Ofélia, personagem de Hamlet, e da Lady of Shallot, do poema do britânico Alfred Tennyson, para retratar a morte por afogamento como algo romântico e tranquilo, mas Pascal sabe, por experiência, que a verdade é muito diferente.
Mesmo os suicidas lutam pela vida no último momento e os seus rostos mostram essa luta. E o processo de decomposição começa muito mais rapidamente na água. Esta mulher, ele comentou, "parece estar apenas dormindo e esperando o príncipe encantado aparecer."
Como tantos antes dele, a imaginação de Jacquin havia sido despertada pelo rosto da jovem e ele já tinha começado a tecer um conto de sua autoria sobre os olhos fechados, o misterioso sorriso, e o enigma da Inconnue.
Outros especialistas consultados pareceram concordar que o rosto do molde parecia muito saudável para ter sido retirado do rosto de um cadáver. Na oficina em Arcueil, Michel Lorenzi, o proprietário atual, está encantado com a fascinação das pessoas pela desconhecida do Sena.
"Não me parece o rosto de uma pessoa morta. É muito difícil manter um sorriso enquanto um molde está sendo feito, então eu acho que ela era uma profissional, uma modelo muito boa. "
Rosto foi escolhido por fabricante de manequim por sua 'expressão natural' |
Inspirações
Sem hesitar, ela me contou a história de duas irmãs, gêmeas idênticas, que tinham nascido em Liverpool mais de um século atrás. Uma delas, segundo a guia, se envolveu em um caso de amor com um pretendente rico e fugiu para Paris, para nunca mais ser vista. Muitos anos depois, a outra irmã foi a Paris de férias. Andando por uma rua ela ficou surpresa ao ver a máscara da Inconnue afogada pendurada do lado de fora de oficinas de moldadores.
Ela reconheceu imediatamente a menina como sua irmã gêmea há muito desaparecida, condenada - ou abençoada - a permanecer eternamente jovem, enquanto sua irmã envelheceu. Fiquei fascinado pela história. Mais uma vez, uma história foi criada em torno do enigma da Inconnue.
A outra vem de um artista baseado em Oxford chamado John Goto. Anos atrás, ele decidiu criar sua própria ficção para o rosto.
Ele relatou em detalhes um trabalho de detetive que parecesse verdadeiro - seguindo "pistas" que conduziram à descoberta de um cartão de vistas da virada do século encontrado em uma loja em Buenos Aires.
Esta e outras evidências provariam, supostamente sem deixar dúvidas, a identidade da Inconnue - ela teria sido uma atriz húngara chamada Ewa Lazlo, que foi assassinada por seu amante, Louis Argon. Goto colocou a história e suas "provas" online, e começou outros projetos.
Fim
do mistério
Então, eu pensei, a história de Ewa está começando a ter vida própria. Vários sites e blogs estão citando como fato que ela é a Inconnue.
Goto admite se sentir um pouco desconfortável com a sua criação. "Eu tinha assumido que as pessoas teriam uma visão pós-moderna e tratariam a história como ficção", ele me disse. "Eu realmente não esperava que eles fossem levar a sério."
Mas mesmo se Ewa for uma lição para não acreditarmos em tudo que se lê na internet, é improvável que a história vá muito além.
O que amamos sobre a Inconnue é a incerteza, o enigma. O que dá valor à máscara é o mistério ao seu redor.
No momento em que tivermos um nome, uma história de vida, aquele mistério está morto.”
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