Browning é recebido por um homem que, primeiramente, passa uma gaze embebida em álcool no alto das suas costas. Depois, munido de um bisturi, ele faz um corte na pele de Browning e encosta seus lábios na ferida para lamber o sangue que escorre.
Pesquisador da Universidade Estadual da Louisiana, Browning decidiu encarar a experiência como parte de seu mais recente projeto: um estudo etnográfico da comunidade de "vampiros" desta cidade americana.
Antes de conhecê-los pessoalmente, o americano acreditava que esses "vampiros" eram apenas pessoas que tinham perdido a noção entre a realidade e a ficção. Mas, ao se oferecer como doador, suas opiniões mudaram radicalmente.
Muitos desses "vampiros" não acreditam em fenômenos paranormais nem são fãs ardorosos de obras como True Blood ou Drácula. Tampouco parecem sofrer de distúrbios psicológiocos.
Em vez disso, eles alegam sofrer de uma estranha doença, com sintomas como fadiga e fortes dores de cabeça e de estômago que, segundo eles, só podem ser aliviados ao se ingerir sangue de outro ser humano.
"Só nos Estados Unidos, há milhares de pessoas que fazem isso, e não acho que seja uma coincidência ou uma moda", afirma Browning.
Cura antiga
"Quando se fala de vampiros assumidos, é comum pensar em imagens horríveis. Por isso, a comunidade é tão fechada e cautelosa com quem é de fora", diz D. J. Williams, sociólogo da Universidade Estadual de Idaho.
Mas nem sempre foi assim. Ao longo da história, encontramos casos em que o sangue humano era considerado uma cura médica genuína.
Por exemplo, no fim do século 15, o médico do papa Inocêncio 8º teria retirado o sangue de três jovens para dá-lo (ainda morno) ao pontífice, na esperança de que a vitalidade da bebida lhe faria bem. Décadas depois, a substância passou a ser usada no tratamento da epilepsia.
"O sangue era um mediador entre o físico e o espiritual", explica Richard Sugg, da Universidade de Durham, no Reino Unido, que recentemente escreveu um livro sobre o uso de cadáveres na medicina e que está trabalhando em um ensaio sobre vampirismo.
Esses tratamentos acabaram caindo em desuso após o Iluminismo, com o estabelecimento do puritanismo que dominou os séculos 18 e 19. Ainda assim, a prática parece ter perdurado para um pequeno grupo de pessoas. Antes da internet, elas viviam isoladas. Mas, agora, conseguiram formar prósperas redes ocultas.
"Até onde se sabe, a maioria das grandes cidades do mundo tem uma comunidade de vampiros", afirma Williams.
Cidadãos comuns
Conversando sobre seu projeto com o dono de uma loja de roupas góticas, o cientista foi apresentado a uma mulher que fazia compras no local, junto com seus dois filhos. "Assim que ela sorriu, dizendo que poderia me ajudar, notei seus dois caninos salientes e afiados", conta.
A partir desse encontro, Browning conheceu e fez amizade com um grande grupo de "vampiros". E, quanto mais ele se aproximava, mais foi percebendo as diferentes personalidades de cada um. Apesar de alguns usarem próteses nos caninos e dormirem em caixões, a maioria não se interessa por vampiros da ficção.
Outra surpresa para Browning foi descobrir que eles são cidadãos comuns e trabalham como balconistas, secretárias, garçons, enfermenrias. Alguns frequentam a igreja, e muitos são bastante altruístas.
"Os vampiros de verdade não ficam perambulando por cemitérios, frequentando discotecas góticas ou participando de orgias", conta Merticus, um membro dessa comunidade que pede para não ser identificado.
"Muitas organizações de vampiros contribuem com entidades beneficentes que ajudam sem-teto, animais maltratados e outras causas."
Enquanto alguns buscam a energia paranormal que lhes dá força, outros (conhecidos como "med sangs" – ou sanguinários médicos) acreditam que sua necessidade de consumir sangue é puramente fisiológica.
'Refeição' consensual e médica
É uma história que outros "vampiros" conhecem bem. Além de um forte cansaço, outros sintomas comuns incluem dores de cabeça severas, cólicas, enjoos, dores musculares e constipação extrema.
Mas, como é de se esperar, encontrar doadores não é fácil. Como pedir para alguém deixar que outra pessoa sugue seu sangue?
A "vampira" CJ me conta que seus amigos mais íntimos sabem de sua necessidade e se oferecem para ajudá-la. Já Kinesia, outra participante que não quer divulgar seu nome, se alimenta do sangue do marido a cada duas semanas. Outras "vítimas" o fazem em troca de pagamento. O importante é que a relação seja consensual.
Outra característica que derruba mitos: a extração do sangue é muito mais como um procedimento médico do que um banquete devorador. Normalmente, tanto o doador quanto o "vampiro" passam por uma série de exames para comprovar que não sofrem de infecções transmissíveis.
O corte na pele é feito com bisturis ou seringas descartáveis abertos na frente do doador, e o local a ser perfurado é sempre estereliziado antes e depois. Se alguém bebe diretamente da ferida, é preciso lavar a boca, escovar os dentes e fazer um bochecho antes.
"Nossa comunidade toma muito cuidado com questões de saúde", conta Alexia, uma "vampira" britânica. Segundo ela, a refeição é "bastante impessoal, quase como tomar um comprimido".
Após alimentar-se de sangue, pessoas como Alexia não relatam sofrerem de efeitos colaterais, apesar da ingestão de uma grande quantidade de ferro poder ser perigosa. Muitos "vampiros" têm medo do estigma que os acompanha e, por isso, escondem o fato de seus médicos.
Fisiológico ou psicológico?
Outros também admitem que existe uma possibilidade do problema ter uma origem psicossomática. Kinesia conta que teve de ser internada com uma intensa arritimia cardíaca e desmaios depois de passar quatro meses sem ingerir sangue.
Para Tomas Ganz, patologista da Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos Estados Unidos, o "alívio" sentido pelos "vampiros" ao se alimentar pode ser essencialmente psicológico.
"Existe um grande efeito placebo, parecido com a sensação de ingerir substâncias que não aparentam nem têm o sabor de comidas convencionais. Esse efeito pode ser intensificado se existe uma espécie de ritual associado à ingestão e se a pessoa sente uma espécie de exclusividade", afirma Ganz.
Como o sangue é altamente nutritivo e é um laxante natural, o médico acredita que a substância ofereça um alívio temporário para distúrbios digestivos.
Outros cientistas teorizam se essa "fome de sangue" não é, na realidade, um sinal de um problema mental mais grave. "Trata-se de uma prática que vai muito além do comportamento dito 'normal', por isso creio que é preciso investigar se há alguma psicose envolvida", afirma Steven Schlozman, da Universidade Harvard.
No entanto, com a convivência com esses indivíduos, Browning e Williams afirmam que não notaram evidências de dificuldades psicológicas. Agora que a comunidade de "vampiros" está se abrindo mais, é possível que cientistas consigam explorar melhor essas questões e oferecer respostas para essa misteriosa condição.
Independentemente das explicações, Browning acredita que os "vampiros" merecem o mesmo respeito dado a outras minorias. "O que acontece com eles é real. Nós não entendemos o que é e eles também não. Mas eles estão tentando lidar com a situação da melhor maneira", afirma."
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